sábado, 23 de maio de 2009

Abril Despedaçado


Eu não tenho palavras pra falar sobre esse filme. Na falta de próprias, faço uso das de Celso Sabadin, jornalista e crítico de cinema:

ABRIL DESPEDAÇADO
Por Celso Sabadin

"Cada cena é uma pintura. Cada diálogo é uma poesia. A luz mágica do diretor de fotografia Walter Carvalho e a direção fluente de Walter Salles (a mesma dupla de Central do Brasil) convidam a platéia a embarcar num tempo e numa geografia perdidos em algum lugar no sertão nordestino.

Horizontes amplos. Diálogos longamente meditados. Abril Despedaçado tem uma estética própria, reflexiva, há anos luz de distância da era dos videoclipes. Entrar numa sala escura de cinema para apreciá-lo é como embarcar num Túnel do Tempo sensorial.

Tudo começa com Pacu (o garoto Ravi Ramos Lacerda, estreante em cinema) tentando narrar a própria saga. Ele diz que tem uma história para contar, mas não consegue se lembrar de tudo. Provavelmente porque tem ainda uma outra história martelando dentro de sua cabeça, que não quer sair.

Inspirado (e não exatamente baseado) no romance homônimo do escritor albanês Ismail Kadaré, Abril Despedaçado narra a luta entre duas famílias, no interior nordestino, nos primeiros anos do século 20. É uma guerra aberta, repleta de normas que soam ridículas aos ouvidos modernos, mas que foram exaustivamente pesquisadas antes de serem colocadas no roteiro. Em nome da terra, eles se digladiam, se assassinam mutua e lentamente, geração após geração. A morte de um vale, por direito, a morte do outro, como num jogo de cartas marcadas onde não haverá vencedores. Há tréguas combinadas e braçadeiras negras que marcam a próxima vítima. Há a estúpida justificativa do assassinato pela honra e a cruel determinação de quem deve morrer, e quando. É o "olho por olho que cega o mundo" ao qual se referia Mahathma Gandhi.

Porém, no novo século (o 20 e não o 21), este mórbido círculo vicioso terá de ser quebrado. A função caberá a Tonho, personagem de Rodrigo Santoro, de Bicho de 7 Cabeças, novamente ótimo. Tonho é um rapaz de 20 anos, marcado para nunca fazer 21, que não conhecia o amor. Travado, resignado à própria sorte centenária, ele passa a conhecer o outro lado da moeda pela figura libertária de Clara (Flávia Marco Antonio, atriz vinda do circo que também faz sua estréia no cinema). Não por acaso, Clara é uma artista de circo. Circo, liberdade, criação, alegria. Elementos que se chocam frontalmente com o rude cotidiano de Tonho, um círculo vicioso de dor e tristeza ritmado pelo som melancólico do moinho de cana puxado por bois. O rapaz forçosamente terá de resolver esta dicotomia, custe o que custar. E custará caro.

Abril Despedaçado é uma preciosidade. É Cinema na maior acepção da palavra: sons e imagens que se interligam com talento incomum para contar uma história preciosa. E ainda um forte sinalizador que Central do Brasil não foi um ato isolado de “sorte”, mas sim o resultado de um trabalho sério e profissional.

Abril Despedaçado pode não ter sido indicado ao Oscar. E daí? É um filme obrigatório do cinema brasileiro."

Não deixem de vê-lo.


Memórias Póstumas de Brás Cubas


É Machado de Assis. Não precisa de comentários.

"Havia já dous anos que nos não víamos, e eu via-a agora não qual era, mas qual fora, quias fôramos ambos, porque um Ezequias misterioso fizera recuar o sol até os dias juvenis. Recuou o sol, sacudi todas as misérias, e este punhado de pó, que a morte irá espalhar na eternidade do nada, pôde mais do que o tempo, que é o ministro da morte. Nenhuma água de Juventa igualaria ali a simples saudade.
Creiam-me , o menos mau é recordar; ninguém se fie da felicidade presente; há nela uma gota de baba de Caim. Corrido o tempo e cessado o espasmo, então sim, então talvez se pode gozar deveras, porque entre uma e outra dessas desilusões, melhor é a que se gosta sem doer." (p. 8)

"O lábio do homem não é como a pata do cavalo de Átila, que esteriliza o solo em que batia; é justamente o contrário." (p. 76)

"Há umas plantas que nascem e crescem depressa; outras são tardias e pecas. O nosso amor era daquelas; brotou com tal ímpeto e tanta seiva, que, dentro em pouco, era a mais vasta, folhuda e exuberante criatura dos bosques. Não lhes poderei dizer, ao certo, os dias que durou esse crescimento. Lembra-me, sim, que, em certa noite, abotoou-se a flor, ou o beijo, se assim lhe quiserem chamar, um beijo que ela me deu, trêmula, - coitadinha, - trêmula de medo, porque era ao portão da chácara. Uniu-nos esse beijo único, - breve como a ocasião, ardente como o amor, prólogo de uma vida de delícias, de temores, de remorsos, de prazeres que rematavam em dor, de aflições que desabrochavam em alegria, - uma hipocrisia paciente e sistemática, único freio de uma paixão sem freio, - vida de agitações, de cóleras, de desesperos e de ciúmes, que uma hora paga à farta e de sobra, mas outra hora vinha e engolia aquela, como tudo mais, para deixar à tona as agitações e o resto, e o resto do resto, que é o fastio e a saciedade: tal foi o livro daquele prólogo." (p. 89)

"O mundo era muito estreito para Alexandre; um desvão de telhado é o infinito para as andorinhas." (p. 111)

"Quem escapa a um perigo ama a vida com outra intensidade." (p. 130)